quarta-feira, 4 de junho de 2008

A consciência do mal no paraíso tropical




Já escrevi aqui e repito: Gilberto Braga é nosso Balzac eletrônico. Algumas de suas novelas trouxeram contribuições para a consciência da população, fato ignorado por pessoas que acham que a cultura de massas é uma deformação da "verdadeira" arte. Não me refiro a uma mágica "tomada de consciência" para o novo. Nada disso. A história marcha dentro de nós não apenas em brados retumbantes, revoluções heróicas ou rupturas traumáticas. Uma consciência óbvia do dia-a-dia é matéria palpável que se deposita aos poucos em nossas cabeças e vai mudando o país, às vezes mais solidamente que grandes contradições políticas. Nossa "petite histoire" nos transforma. Assim como o tumor no intestino de Tancredo levou o Brasil para outro rumo, assim como o porre de Jânio inverteu nossa política, vimos que um dos impulsos para o impeachment do Collor veio do seriado "Anos Rebeldes" na TV, que mostrava a luta dos jovens contra a ditadura; a novela "Vale Tudo" revelou "aquela festa pobre para a qual não nos tinham convidado, para nos convencer a pagar sem ver toda essa droga que já vem malhada antes de nascermos", como cantava o genial Cazuza na abertura - lembram? "Paraíso Tropical", que bateu 60 pontos de Ibope, faz parte dessa saga que nos ajuda a berrar internamente: "Brasil, mostra a tua cara!..."

Vivemos um tempo em que o Brasil está mostrando a cara como nunca. Há alguns anos, a população tinha uma opinião difusa de seus males políticos e éticos: "Ah... são todos uns ladrões... ah... isso não tem jeito, estamos à beira do abismo..."

Agora, depois da democratização, depois de 20 anos de liberdade de imprensa, o "mal nacional" passou a ter personagens cada vez mais claros. O chofer de táxi não me pergunta mais: "Então, seu Jabor, esse país vai pro brejo?..." Não, ele me pergunta: "E aí, o Renan cai ou não?"
Nosso "mal" agora tem personagens, dentro e fora da TV. Wagner Moura (Olavo) ou Taís (Alessandra Negrini) têm contrapartidas políticas em gente como Dirceu ou Ideli (aliás, vocês viram a "Veja" desta semana, com a Salvatti metida em tramóias de ONGs?) e a novela do Aguinaldo Silva, "Duas Caras", promete continuar a saga inspirada na política. Alguns momentos recentes do show do parlamento e do Executivo foram inesquecíveis como teatro ou cinema: o discurso do Roriz, uivando com gemidos melodramáticos, a invasão da Câmara pelo Bruno Maranhão do MST, o duelo de Jefferson com Dirceu, um "agon" raro até nos gregos, a atuação de megastar de Lula na reeleição, correndo pela passarela como um Mick Jagger do ABC, berros, socos no plenário, ah, Deus... tanta fartura... A política já é uma ficção barata mais inverossímil do que os folhetins.
Nas novelas, as personagens malvadas ou psicopatas são muito mais interessantes que as boazinhas e fazem mais sucesso. Claro, são reconhecidas pelo grande público, que sabe que (ao contrário do que muito intelectual engajado e mecanicista pensa) para entender o Brasil é melhor estudar as classes dominantes do que as vítimas de seus crimes históricos. Lamentar que a Justiça é injusta ou que os famintos têm fome não adianta. Também não tem sentido propagar uma "santidade" que os pobres assumiriam pelo sofrimento e a exclusão. Miséria não santifica nem faz heróis. Importa é entender os responsáveis por nossa desgraça histórica. Ler Sérgio Buarque ou Raimundo Faoro é muito mais esclarecedor que Florestan Fernandes. A miséria do povo não explica o país; o país que os donos do poder organizaram é que explica nossa miséria.
Não li esse livro "A Cabeça do Brasileiro", de Alberto Carlos Almeida, que está sendo atacado como "fascista", quando parece que ele apenas teve a coragem de analisar seriamente o óbvio: que a miséria produz ignorância, preconceito, voracidade e crime. Coitado... por que foi mexer nos dogmas da santidade da estupidez? Exatamente aquela que o Lula cultiva tanto, ao elogiar a própria ignorância diante de seus jovens eleitores. Lula, junto a Edir Macedo, seu mais recente amigo de infância, não é bobo e confia em seus pelotões de analfabetos, origem da fortuna milionária de Edir e de seu prestígio político invencível. A educação e a cultura que o crescimento promove em São Paulo, por exemplo, é muito mais democrática e modernizadora que a boçalidade cultivada com zelo pela burguesia nordestina - a indústria da seca dos cérebros.
Por um lado, a democracia nos trouxe uma visão mais complexa de nossas doenças endêmicas. Por outro, o simplismo que este governo de sindicalistas propõe nos leva a um regressismo que pode destruir a delicadeza da liberdade e o avanço da consciência histórica. Muito mais do que conceitos fechados, totalizantes, recortes severos e radicais, a ficção democrática, lúdica, não-ideológica, o retrato sem contornos de uma novela pode nos revelar, pelas imagens, caras, falas, o entendimento de que a realidade é extensa, não controlável e essencialmente democrática.
Li, num texto de um cara ótimo, Ernest Becker, chamado "A Frágil Ficção", o seguinte: "A liberdade do homem é uma liberdade fabricada. E ele paga um preço por isso. Temos de defender a completa fragilidade de nossa ficção delicadamente constituída". A importância da democracia é justamente o respeito a um mistério que há em nosso destino. Prendê-la em dogmas superados e fracassados é um dos perigos que corremos, tanto na cultura como na economia.
Carlos Alberto Sardenberg também escreveu outro dia sobre a política econômica da velha esquerda: "Por não aceitar o funeral do socialismo, o Brasil se atrasa e perde as imensas oportunidades que o capitalismo global oferece". É isso aí. Apesar da burrice dominante, o país vai mudando.

(Arnaldo Jabor)

Publicado em: 02/10/2007

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